Perguntas não respondidas pelo “Profissão Repórter”

Entre o cinismo e a demagogia: a Globo e o criminalização do trabalhador na Amazônia

O episódio do programa “Profissão Repórter” que foi ao ar no dia 26 de dezembro na Rede Globo, dentre outras matérias jornalísticas, mostrou o drama dos garimpeiros que vivem da extração do ouro na cidade de Manicoré, às margens do Rio Madeira. A reportagem exibiu uma série de entrevistas com pessoas de alguma forma envolvidas na atividade garimpeira; seja diretamente no trabalho de mineração, seja indiretamente, vivendo em uma cidade cuja atividade econômica mais importante é o garimpo. Alguns dos entrevistados chegaram a admitir que abandonaram o trabalho, única fonte de renda para o seu próprio sustento e de suas famílias, sendo a causa principal dessa decisão a ação do governo federal em setembro, quando uma grande operação resultou na apreensão e destruição de balsas usadas no garimpo.

Em meios às imagens e depoimentos coletados na cidade, o repórter Caco Barcellos aborda uma canoa conduzida por Paulo Magalhães, professor e garimpeiro da região, no momento em que este se dirigia para o trabalho no garimpo. Acompanhado de algumas crianças (que pareciam ser seus filhos), o homem de fortes traços indígenas narra os momentos de desespero vividos ao longo dos últimos meses por conta da repressão agressiva a que ele e os demais trabalhadores auríferos da região foram submetidos. Paulo, assim como muitos outros homens que tiram seu sustento das águas do Madeira, teve sua balsa destruída em uma das operações do governo federal no ano de 2023. Ao longo de sua entrevista, Paulo revela o motivo por que abandonou a atividade docente para se dedicar à busca pelo ouro: seu salário mensal como professor corresponde a alguns dias de extração no garimpo.

Ainda que o tom do programa seja de apoio às operações de repressão, há um esforço dos responsáveis pelo “Profissão Repórter”, sob o comando de Barcellos, de humanizar aqueles que ainda estão na lida garimpeira. Um dos exemplos desse enfoque empático é a narrativa de um casal que trabalha diariamente em uma balsa no rio Madeira desde 1984, tendo custeado a educação da filha no ensino superior com a renda do garimpo.

Nesse sentido, não são feitos pelo programa da Globo maiores questionamentos sobre as possíveis alternativas econômicas ao garimpo. Ainda que a atividade em si não seja ilegal, a presente política ambiental do governo brasileiro a coíbe, restringindo a legalização de novas lavras. Em diferentes momentos do programa, a agricultura de manejo sustentável e o extrativismo vegetal, tratados como “ecologicamente corretos”, são apresentados como substitutos ao trabalho na extração de ouro. Porém, as pessoas entrevistadas por Barcellos e seus colegas foram quase unânimes em reclamar do baixo retorno de tais atividades – especialmente, quando comparadas com o garimpo. A visão dos amazônidas é clara: há um descompasso entre a propaganda ambientalista, que promete prosperidade através do desenvolvimento de setores produtivos com “selo verde”, e a realidade. Em meio a esse imbróglio, a Região Norte segue com os piores indicadores sociais e de renda do país. Enquanto a atividade garimpeira é condenada pelo despejo de mercúrio nas águas dos rios, a precariedade da rede de saneamento e saúde na região não incomoda os críticos implacáveis da extração mineral.

O “Profissão Repórter” também insiste em naturalizar as longas viagens por via fluvial a que os habitantes da região precisam se submeter e a falta de estrutura das cidades da Amazônia. O experiente repórter gaúcho chega a se espantar com a periculosidade e o improviso da “rampa de desembarque” do Porto de Manicoré; na verdade, uma tábua que ligava o barco à terra firme. No entanto, o espanto de Caco não o leva a questionar os motivos por trás da indisponibilidade de outros meios de transporte na região ou da impossibilidade de se construir um porto que ofereça segurança e dignidade aos moradores do município. Esse questionamento, infelizmente evitado pela reportagem, levaria fatalmente ao embargo logístico promovido pelo atual Ministério do Meio Ambiente e sua política “santuarista”.

O município de Manicoré (AM), retratado no episódio do “Profissão Repórter”, tem uma área de 48 mil km², mas possui apenas 57 mil habitantes, com uma densidade populacional de 1,2 habitante por km². Para efeito de comparação, a área de Manicoré excede a do Estado do Rio de Janeiro. Ao parco povoamento, corresponde o baixo IDH, com apenas R$ 7,8 mil de renda per capita, valor quase oito vezes menor do que a renda per capita do Estado do Rio de Janeiro. Esses dados, coletados em 2013, podem estar defasados, especialmente depois da virtual proibição da atividade garimpeira, que impactou negativamente na renda do município.

A Manicoré só se chega de barco, pelo Rio Madeira; ou de avião, pelo pequeno aeroporto local. O surgimento da cidade remonta à década de 1870, no início do ciclo da borracha, quando massas de nordestinos, fugindo da grande seca de 1877-78, aportaram na região. Não por acaso, o lema da cidade é “produzir é evoluir”.

No decorrer do episódio, os repórteres da Globo dirigem-se a uma cooperativa de extrativistas, apresentada como um contraponto produtivo ao garimpo. Porém, as limitações e problemas flagrados na breve visita dos jornalistas evidenciam o cinismo da reportagem. A própria atividade extrativista, para ser viável, requer um aumento progressivo do mercado de consumo (ainda muito pequeno) e da área de extração (consequentemente maior área), além de demandar o desenvolvimento de um complexo industrial que beneficie e agregue valor ao seu produto. Como esses amazônidas vão trazer uma indústria para a região? Não há estradas; não há sequer energia. Caco Barcellos e a equipe de reportagem não se sentiram incomodados usando de câmeras de alta tecnologia e calçados caros (cuja matéria-prima é a borracha), provavelmente importados do exterior; certamente, beneficiados bem longe dali?

Afinal para quem é interessante que essas pessoas que vivem do extrativismo continuem ganhando uma miséria na base da pirâmide da produção da borracha? Quem se beneficia? Os pneus que cruzam rodovias bem longe dali, as peças dos aviões que levam Caco Barcellos e equipe de volta à uma “civilização” que se refestela com a miséria “sustentável” da Amazônia.

Outro momento de flagrante cinismo no episódio se dá na visita da equipe ao “Seu Clóvis”, um garimpeiro que “trocou o garimpo pelo seringal”. O Amazônida, “que ajudou a fundar a associação”, hoje vive da colheita do açaí. Enquanto a narração da matéria anunciava orgulhosamente a “mudança de vida de Seu Clóvis”, o trabalhador, já em idade avançada, arriscava a sua vida para subir “à unha” num pé de açaí e colher um belo cacho do fruto. Quando perguntado sobre o que seria preciso para que os extrativistas pudessem viver dignamente do seu trabalho, Clóvis disse sem pestanejar: “beneficiar o produto”, ou seja, industrializar e controlar a cadeia produtiva da colheita até o produto final. Isso significaria para o Seu Clóvis não apenas recolher de forma precária e arriscada a riqueza da natureza amazônica, mas participar de todo o processo de beneficiamento e agregação de valor do produto. Assim, quando Caco Barcellos e sua equipe desfrutarem de um dos mais intensos sabores que a Amazônia produz em algum restaurante de São Paulo ou de Nova Iorque, a cooperativa do Seu Clóvis poderá ter o justo retorno pela riqueza da nossa terra. 

O Senhor Clóvis sabe que está na base da pirâmide produtiva e também sabe que Caco Barcellos e seus aspirantes a repórter são incapazes de subir em um pé de Açaí. Porém, uma pergunta se impõe: quem realmente se beneficia do extrativismo (da colheita) arcaico; dessa “miséria sustentável” à qual Seu Clóvis, apesar de sua saúde e energia, se submete? Quem vai trazer energia suficiente para industrializar e beneficiar a colheita do Seu Clóvis? Como essa produção, aumentada com o seu beneficiamento, será escoada?

O Senhor Clóvis sabe que, apesar de sua idade avançada, ainda vai ter que subir em pés de açaí “na unha” em troca de uma miséria durante muitos anos. Esse esforço do trabalhador amazônida tem como beneficiário, além de uma cadeia de atravessadores, um consumidor final, morador de uma área urbanizada, que aperta um botão para subir 20 andares do seu edifício com ar condicionado, luz elétrica e comida ao alcance da tela de um aplicativo ou da prateleira de um supermercado. Enquanto esse homem médio das nossas grandes cidades bate palmas para a demagogia verde santuarista que condena a Amazônia à miséria e ao subdesenvolvimento, Seu Clóvis e seus companheiros da associação extrativistas seguem prisioneiros dessa agenda, que lhes impõe o destino de serem eternos coletores das riquezas das florestas, condenados a um estilo de vida arcaico. As fábricas e os empregos continuarão bem longes dali, tal como os melhores salários, a alta tecnologia, as melhores escolas e os melhores hospitais. Assim como a Amazônia precisa ser urgentemente integrada social e economicamente ao restante do Brasil, Seu Clóvis e todos os demais trabalhadores amazônidas merecem ser contemplados pelos direitos e oportunidades que a Constituição Nacional garante a todo brasileiro e que somente a prosperidade e o desenvolvimento podem oferecer.

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